O que vou falar agora pode soar um pouco desconcertante para alguns: O sistema financeiro é baseado, principalmente, em uma coisa – fé. O risco sistêmico é, essencialmente, o risco de que as pessoas percam a fé no sistema financeiro.
A relação entre o sistema financeiro e a fé
O sistema financeiro existe para, em poucas palavras, organizar o fluxo do dinheiro. Ele conecta os agentes econômicos superavitários (aqueles que têm dinheiro de sobre) com os agentes econômicos deficitários (aqueles que precisam de dinheiro).
O dinheiro é, na sociedade moderna, a representação da riqueza. Só que tem um “probleminha”… O dinheiro, intrinsecamente, não tem valor nenhum.
O valor do dinheiro está no fato de que nós (a sociedade) “acreditamos” no dinheiro. É como se todos nós fizéssemos um grande pacto coletivo, onde dizemos para os outros e para nós mesmos “a partir deste momento, eu creio que este pedaço de papel pintado inútil vale UMA unidade monetária”… Se todo mundo concordar em acreditar naquilo, assim será.
O dinheiro (e a própria economia como um todo) é aquilo que o historiador israelense Yuval Noah Harari (no desconcertante livro “Sapiens”) chama de “ordem imaginada”. É uma coisa que não existe concretamente, mas apenas no imaginário coletivo da sociedade.
Enfim, o dinheiro tem valor porque temos “fé” nele. E o sistema financeiro, por ser algo que existe apenas em função do dinheiro, também é apoiado na fé. Não numa fé religiosa, mas na nossa “fé social” de que aquilo (o dinheiro) tem valor.
Risco sistêmico e risco sistemático
Uma confusão comum é entre risco sistêmico e risco sistemático. Muitas pessoas (incluindo profissionais e acadêmicos) acabam usando, até por força de hábito, a expressão “risco sistêmico” (que é o que estamos tratando aqui) para designar “risco sistemático” (que é outra coisa).
O risco sistêmico é um tipo de risco que é bastante associado ao sistema financeiro (cujo impacto na chamada “economia real” ocorre de forma indireta). Já o risco sistemático é um risco que afeta a economia como um todo (inclusive a economia real), como, por exemplo, uma recessão.
Saiba mais neste artigo: Riscos sistemáticos e específicos – Entenda
Além do artigo sugerido acima, também tem este vídeo aqui, chamado “O que é risco sistêmico, sistemático e não-sistemático”
Como o risco sistemático se manifesta
A mais conhecida manifestação do risco sistemático é a “corrida aos bancos”. Uma grande parte do dinheiro não existe em sua forma física, e sim na forma de moeda escritural (como depósitos bancários e registros eletrônicos).
Quando as pessoas, por alguma razão, perdem a confiança no sistema financeiro, uma das reações mais comuns é procurar tirar todo o dinheiro que está nos bancos e “esconder debaixo do colchão” ou, em casos mais extremos, sacar o dinheiro e adquirir ativos tangíveis como imóveis e metais preciosos.
O problema de uma corrida aos bancos é que não existe dinheiro “físico” para todo mundo, caso um grande número de pessoas resolva sacar. Apenas uma pequena parte da massa monetária existe na forma de notas e moedas. Então, num evento assim, como se dizia no velho oeste: “vence aquele que saca mais rápido”.
Isso leva, naturalmente, as pessoas a “surtarem” ao menor sinal de fragilidade do sistema financeiro, e vira uma profecia autorrealizável, pois se as pessoas começam a sacar furiosamente o dinheiro de um banco que já está meio “mal das pernas”, isso pode precipitar a quebra desse banco. E a quebra de um banco pode levar as pessoas a acreditarem que outros bancos estão na mesma situação, e correr para tirar o dinheiro de lá.
Ou seja, é o caos… As pessoas perdem a confiança no sistema e, quando elas não têm mais “fé”, o sistema desmorona.
Risco sistêmico e “efeito dominó”.
“Efeito dominó” é a expressão que, provavelmente, melhor define o risco sistêmico. A perda de confiança das pessoas em uma instituição financeira (um banco, por exemplo), pode criar um contágio em todo o sistema financeiro.
Bancos (e fundos de investimento, seguradoras, cooperativas de crédito etc.) ocasionalmente “quebram”, como qualquer instituição privada (e algumas públicas). Às vezes, a quebra de um banco não causa um efeito que se propaga para o sistema financeiro todo (por exemplo, uma quebra de um “banquinho” pequeno e obscuro, que nem acaba se tornando algo de conhecimento do grande público).
Porém, se quebra um banco ou pouco maior (ou mesmo um banco pequeno em uma circunstância econômica mais tensa), o público pode começar a achar que o sistema vai ruir… Aí começa a tal “corrida aos bancos” e o sistema desmorona mesmo…
Empresas não-financeiras (como indústrias e comércios) não costumam sofrer de risco sistêmico, pois a quebra de uma dessas empresas raramente gera uma reação em cadeia que compromete seu segmento de negócios como um todo.
A quebra de uma grande indústria, por exemplo, é um evento muito desagradável, que gera perdas para acionistas, empregados e fornecedores. Mas raramente a quebra de uma indústria vai gerar um “efeito dominó” que pode abalar um dos pilares da sociedade, que é o sistema financeiro.
Por conta disso, governos e autoridades não têm uma preocupação tão grande com outros setores da economia quanto têm com o setor financeiro (isso frustra muita gente, mas é assim que funciona…).
Como se gerencia o risco sistêmico
O gerenciamento do risco sistêmico é feito pelas autoridades do mercado financeiro e pelas próprias instituições financeiras. Comparado com outros setores da economia, o setor financeiro é EXTREMAMENTE REGULADO e as instituições precisam seguir inúmeras regras.
Por isso, não é qualquer “Zé Arruela” que vai lá e abre um banco ou uma corretora de valores… Precisa ser um Zé Arruela diferenciado, que atenda aos requerimentos das autoridades financeiras e monetárias.
Então, todo o aparato regulatório imposto pelas autoridades financeiras nacionais (e também internacionais, como o famoso “Acordo da Basiléia”) forma a primeira linha de defesa contra o risco sistêmico. A melhor forma de gerenciar o risco sistêmico é impedindo as instituições financeiras de fazerem bobagens que as coloquem em situação de risco e que desencadeiem a desconfiança do público.
Essa primeira linha de defesa (regulação) tem o objetivo de evitar que quebras de instituições financeiras aconteçam. A segunda linha de defesa é acionada APÓS uma quebra, quando a primeira linha falhou: É o chamado “seguro de depósitos”.
O seguro de depósitos é seguro (como o nome sugere) com o objetivo de indenizar (usualmente até um determinado valor) eventuais perdas que um cliente tenha na eventualidade de quebra de um banco. É um mecanismo que tem, como objetivo, tranquilizar as pessoas e dissuadi-las de “correrem aos bancos” caso haja alguma desconfiança ou boato.
E, por falar em boato, os boatos também podem desencadear, “do nada”, uma crise no sistema financeiro, pois eles podem levar as pessoas a perderem a confiança no sistema. Por isso há essa preocupação tão grande, das autoridades e dos governos, com a segurança e a solidez do sistema financeiro.
O FGC – Fundo Garantidor de Créditos
No Brasil, quem provê o seguro de depósitos é o FGC (Fundo Garantidor de Créditos). O FGC é uma instituição privada, mantida pelos próprios bancos e regulado pelo Banco Central.
Em praticamente todas as economias relevantes do mundo existe algum órgão ou mecanismo análogo ao FGC, que tem como objetivo ressarcir perdas mas, antes de tudo, dar uma confiança adicional ao sistema financeiro, garantindo às pessoas que elas terão seu dinheiro de volta se alguma coisa der errado.
Leia aqui: Fundo Garantidor de Créditos (FGC) – O que é e como funciona
Conclusão: o mundo é injusto…
Uma coisa que deixa muitas pessoas revoltadas (e eu não tiro a razão delas) é que, em grandes crises, é comum que os governos se preocupem em salvar os bancos (e, inevitavelmente, os banqueiros) e deixam o setor produtivo “implodir”.
É uma tremenda injustiça que o governo jogue a “boia salva vidas” para os bancos, mas deixe as empresas, que produzem e geram empregos, irem para o buraco… Mas a razão para isso é, exatamente, a existência do risco sistêmico. Uma fazenda, por exemplo, não precisa se apoiar na “fé” para existir. Aquilo que ela produz é tangível e tem valor intrínseco. As pessoas não precisam “acreditar” na comida. Elas, simplesmente, precisam comer!
Mas o sistema financeiro é baseado na confiança (fé). Em um mundo ideal, talvez o sistema financeiro nem devesse existir. Mas, no mundo real, em que vivemos, se não houver um sistema financeiro (que faça a intermediação de recursos, ainda que recursos financeiros sem valor intrínseco), toda a atividade produtiva pode acabar ficando inviável.
É comum investidores perguntarem “por que não existe um FGC para títulos não bancários, como as debêntures”? A resposta direta e honesta para isso é que o Governo e as autoridades não veem necessidade de se preocuparem com uma empresa que quebra. Novamente, uma empresa quebrar é uma coisa ruim (inclusive, em alguns casos, do ponto de vista político). Mas, nem de longe, a quebra de uma empresa tem o efeito de propagação e a amplitude da quebra de um banco.
Fora que o colapso do setor financeiro pode, por vias indiretas, precipitar o colapso de vários outros setores da economia real.