Para este artigo, eu vou precisar apresentar um pouco de contexto. No momento em que eu escrevo estas palavras, estamos no pico (ou perto dele, acredita-se) da pandemia de COVID-19 em 2020 e as taxas de juros brasileiras estão em níveis historicamente (e anormalmente, para nossos padrões) baixos. E alguns economistas começam se questionar se chegamos na tal “armadilha de liquidez” que dá título a este artigo.
Primeiro, um pouco sobre “política monetária”
Política monetária é o nome que se dá, genericamente, às ações do governo para controlar a inflação e a moeda (principalmente a inflação).
A principal ferramenta de controle da inflação é a taxa de juros. Quando a inflação começa a subir, a tendência dos governos é aumentar a taxa de juros para “segurar a economia”. É, mais ou menos, como um limitador de rotações de um motor, que restringe a movimentação para evitar que ele “funda” mais à frente.
De forma análoga, quando a inflação está baixa (o que indica que as pessoas não estão comprando e a atividade econômica pode ser aumentada), o governo baixa as taxas de juros para estimular o consumo (e consumo é positivo, pois gera empregos, renda e arrecadação). Reduzir juros é o oposto do limitador de rotações – é “meter o pé no acelerador”.
E a forma principal pela qual o governo manipula a taxa de juros é através da emissão de títulos públicos (guarde isso, pois a chave do entendimento da armadilha de liquidez está aqui).
Definição de armadilha de liquidez
A armadilha de liquidez é um conceito teorizado pelo célebre economista John Maynard Keynes, em 1936, na sua obra Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Aqui, é importante ressaltar a palavra “teorizado”, pois muitos economistas e pesquisadores duvidam que seja um fenômeno real (apesar de existirem evidências fortes a favor).
Quando o Governo quer dar uma “injeção de adrenalina” na economia, ele baixa as taxas de juros. Só que, como praticamente toda droga estimulante, ela começa a perder o efeito se for usada excessivamente. E, quando as taxas de juros estão muito baixas (próximas de zero), já não se tem muito “espaço” (previsivelmente) para baixar as taxas de juros e ter algum efeito significativo.
Talvez, a pergunta que melhor define a armadilha de liquidez é “a taxa já está quase zerada, vai baixar pra onde agora?”
Se preferir, assista também a este vídeo sobre “armadilha de liquidez”:
A “preferência por liquidez”
Uma das pressuposições de Keynes, em sua teoria, é que as pessoas têm uma preferência natural pela liquidez. Entre dois investimentos de risco e retorno similares, elas preferirão aquele que é o mais líquido (e faz todo sentido!).
E, numa disputa entre um título público que não dá “quase nada” de retorno (e ainda tem o risco de desvalorizar se os juros do mercado subirem) e ter dinheiro vivo, qual você acha que é a preferência das pessoas?
Pois é, nada é mais líquido que o próprio dinheiro e, se não houver nenhuma opção interessante de investimento, os investidores ficarão sentados sobre pilhas de dinheiro e nada farão…
Efeitos da armadilha de liquidez
O efeito mais obvio da armadilha de liquidez é que, basicamente, não acontece nada… Baixa-se a taxa de juros esperando uma certa reação da economia e ela não reage.
Quando a taxa de juros está próxima de zero, investidores (e aqui não estamos falando apenas dos “Zés Arruelas” como eu e você, mas, principalmente, de investidores institucionais e tesourarias de bancos) passam a não ter um incentivo para investir nesses títulos.
Quando as taxas de juros estão anormalmente baixas, o “caminho de menor resistência” delas é para cima. E, quando as taxas sobem, o valor dos títulos de renda fixa prefixados cai.
Ou seja, para quem investe em renda fixa prefixada, a relação entre risco e retorno não compensa e é melhor, simplesmente, ficar com o dinheiro líquido, “debaixo do colchão” (mais adiante, um comentário importante sobre essa questão da renda fixa prefixada).
Agora, vendo pela perspectiva dos bancos, a coisa também não é muito interessante. Em circunstâncias normais, quando se baixa a taxa de juros, o crédito fica mais acessível. Os bancos emprestam dinheiro mais barato e o dinheiro começa a fluir mais livremente na economia, alimentando as atividades produtivas.
O problema é que o banco também quer ganhar (e ganhar proporcionalmente ao risco a que ele se expõe emprestando). Se as taxas estão excessivamente baixas, o risco de emprestar não compensa.
Ou seja, a economia, que já estava parada (o que levou o governo a querer aplicar um estímulo, em primeiro lugar) segue parada…
O problema da prefixação dos títulos
Uma das explicações da preferência pela liquidez está no risco de mercado dos títulos de renda fixa prefixados. Eles passam a ter um retorno pífio e um risco enorme. Essa é uma característica da renda fixa prefixada, em que os preços dos títulos caem quando a taxa de juros do mercado sobe.
O problema é que, nas economias desenvolvidas, os títulos de renda fixa (tanto públicos quanto privados) são, majoritariamente, prefixados. Títulos pós-fixados, como as LFTs e CDBs atrelados ao DI, que temos aqui no Brasil, não são comuns lá fora.
Por conta disso, o risco para o investidor em renda fixa fica muito maior nas economias desenvolvidas, onde não se tem a opção de ficar atrelado à taxa de juros, se beneficiando de uma eventual subida.
Casos reais de armadilhas de liquidez
Como foi dito antes, não há consenso, entre os economistas, se a armadilha de liquidez é um fenômeno real ou apenas teórico. Porém, em tempos modernos, surgiram casos que indicam que é algo real.
O mais notável é o Japão que, desde o final dos anos 80, se enfiou num buraco do qual não conseguiu sair até hoje. Lá, as taxas de juros são nominalmente negativas e nada parece reavivar a economia.
Criou-se até o termo japanification (“japanificação” – nada a ver com técnicas orientais para fazer bolos e pães) para se referir à armadilha de liquidez em situação real, associada com deflação e juros negativos.
Outro caso notável foi após a crise de 2008 (a “crise do subprime”) que, diferentemente da “crise do coronavírus” atual, foi uma crise, majoritariamente, do setor financeiro. Para tentar amortecer os efeitos recessivos dessa crise, os bancos centrais das economias desenvolvidas praticamente zeraram as taxas de juros, gerando grandes distorções na economia mundial.
Temos (ou teremos) armadilha de liquidez no Brasil?
Se a crise do subprime (2008) levou ao virtual “zeramento” das taxas de juros nas economias desenvolvidas, com a crise do coronavírus algumas economias emergentes (como Chile e Peru) começam a seguir pelo mesmo caminho (leia aqui um interessante artigo sobre armadilha de liquidez em economias emergentes).
Bem, o Brasil é uma economia emergente… No momento em que eu escrevo estas palavras, a taxa de juros brasileira está longe do zero. Só que temos, aqui, uma questão de perspectiva.
O Brasil foi, por tanto tempo, um país com uma das maiores taxas de juros do mundo que uma taxa de 3% ao ano (que, na Europa ou nos EUA, seria considerada altíssima) é, para nós, anormalmente baixa. E fora que nossa taxa básica (a SELIC) vem caindo rapidamente e, neste momento, ela está mais próxima de zero do que de onde estava há exatamente um ano.
Então, olhando a situação objetiva e imediata, a resposta seria: Não teremos armadilha de liquidez e não estamos próximos disso.
Porém, o Brasil vem passando por grandes transformações no mercado financeiro, nos últimos anos, e estamos enfrentando aquela que é, provavelmente, a pior crise (tanto de saúde pública quanto econômica) dos tempos modernos.
Por isso, nenhuma hipótese deve ser descartada e não devemos nos surpreender se o Brasil for pego em uma inédita e surpreendente (para quem se lembra dos juros brasileiros há poucos anos) armadilha de liquidez.